"Ei moo, tem uma moeda a pra me dar?" "No. No tenho no." "Qualquer coisa." "No mesmo... em que vestibular voc ou?" "Fsica, na USP." "Parabns." "Obrigado."
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O roteiro j se naturalizou e cumprido fielmente, semestre aps semestre, por jovens ingressantes em universidades pblicas Brasil a fora. Como nos permitimos aceitar e reproduzir tais tradies? Uma performance que perpetua contrastes sociais a ignorncia coletiva, o pio da nossa hipocrisia.
Em Varginha, no semforo da principal avenida do centro, rapazes e moas, recm aprovados no ensino superior pblico, celebram sua conquista pedindo uma "esmolinha". Os colegas os despojam dos sapatos, os garotos ficam sem camiseta e todos tm os rostos e os braos pichados por tinta ou ovo e farinha. Dividem espao com aqueles que pedem esmola por uma carncia real, prtica, que contraria a carncia que os filhos da abundncia tm, que de sentido. Divertem-se e demonstram muito prazer na brincadeira, que na sua ingenuidade reflete nossa desumanidade.
Como pedagogo, com a indignao domesticada, corroboro para que o rapaz que estudar fsica na maior universidade do pas chegue ao ensino superior ignorando o seu redor e sambando na cara da sociedade, interveno urbana, que o espetculo do fracasso da nossa educao. A Fsica, cincia que estuda a natureza e seus fenmenos, procura a compreenso cientfica dos comportamentos naturais e gerais do mundo em torno de ns, das mnimas partculas ao universo como um todo. Certamente esse rapaz domina muito bem a linguagem matemtica, o instrumento cientfico fundamental da fsica, mas no compreende a desigualdade social, o "fenmeno" que nas periferias faz barracos desafiarem a gravidade, que entre vrias outras tragdias, faz a populao carcerria do Brasil ser a 3 maior do mundo. Portugus, Matemtica, Histria, Geografia, e todas as outras, fracassam gerao aps gerao, no fazendo entender o contexto da aplicao de suas matrias.
Por que tal trote que am e se sujeitam a ar no pode ser mais criativo? Se no optam por doar sangue nem investir parte do tempo em uma atividade comunitria qualquer, por que no realizam uma atividade artstica ou cultural dentro da prpria escola ou universidade? Se a razo de ser do trote expor os futuros universitrios a uma situao humilhante, porque no os colocam para cantar, danar ou representar, mesmo que no saibam fazer isso? Ou por que no pedem esmolas dentro de suas futuras universidades, lugares onde os pobres de verdade no podem entrar? Por que, meu deus, esses trotes no podem ter uma conotao poltica, com crticas e reivindicaes?
O clique touch screen na tela do celular para gravar o rito de agem faz uma fotografia da nossa pobreza social: o jovem de classe mais favorecida, que cursou o ensino regular em escolas particulares, inquestionavelmente melhores que as pblicas, ingressa no ensino superior em universidades pblicas, inquestionavelmente melhores que as particulares.
Se querem "brincar de pobre" me permito sugerir duas opes como alternativa a ir para o semforo.
1: levem um pobre de verdade para 'brincar de rico", ao menos por um dia que seja. Banho, roupa nova, um tour pelo comrcio para umas comprinhas, cinema, uma noite em alguma boate classe A...
2: pouco mais ousada, e por isso mesmo, gosto mais: pegar um por um dos prncipes e princesas boa pinta que esto tirando onda de pobre, tirar os seus celulares, dinheiro e documentos, solt-los numa periferia, s dez horas da noite, para v-los se virar em um ambiente adverso ao habitual conforto de seus bairros-condomnio.
Mas reconheo, de nada adianta toda essa ladainha. As semanas vo ar, mais jovens, os ricos e os "nova classe mdia", que por sua vez merece uma reflexo a parte, confirmaro resultados positivos e o semforo da Avenida Rio Branco ser palco para eles. O que preocupa que a ignorncia social dessa juventude anuncia nosso futuro: pessoas ocupando cargos no poder, polticos, diretores de universidades, juzes, es de hospitais e pior, muitssimo pior, nas escolas ensinando nossos filhos, sobrinhos e netos.
E claro, esse futuro j presente, no precisa esforo para observar o perfil de muitas pessoas que esto em destaque aqui em Varginha ou em qualquer canto do pas. fcil constatar que muitos deles foram nonsenses que anos atrs pediam esmola nos sinais.