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Coluna | Seu Direito
Dra. Christiane Reyder
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Advogada, Consultora e Mentora em proteo de dados. Mestre e Doutoranda em Direito pela Univ. Lisboa.
Perfil no Instagram: @chrisreyder_protecaodedados
Violao de dados pessoais dos mdicos pelos laboratrios farmacuticos (?)
14/03/2024

Quando se pensa em proteo de dados pessoais, uma prescrio mdica remete de forma natural e imediata para os direitos do paciente, especialmente pelo fato das informaes ali constantes constiturem, nesta perspectiva do paciente, dados pessoais sensveis, segundo a Lei n 13.709/2018, conhecida como Lei Geral de Proteo de Dados – LGPD. 2o6e6k

Entretanto, o que restou evidenciado numa recente reportagem, ao afirmar que “a indstria farmacutica, sem consentimento, vigia milhes de receitas mdicas”, foi a probabilidade de estar em curso uma violao sistemtica do direito proteo de dados dos mdicos.

Segundo noticiado, o procedimento teria por objetivo influenciar as decises dos mdicos em consultrios, clnicas e hospitais, com incio no momento da venda do medicamento: quando as receitas mdicas so lanadas no sistema da farmcia, duas empresas especializadas am os registros, capturam as informaes e as comercializam com as indstrias farmacuticas. Afirma-se serem processadas deste modo pelo menos 250 milhes de receitas mdicas por ano. De posse dos dados, as indstrias farmacuticas traam um perfil profissional dos mdicos e buscam persuadi-los a prescrever os medicamentos por elas fabricados – monitoram os mdicos e utilizando os seus dados para treinamento dos representantes comerciais, para que sejam bem-sucedidos na persuaso. O ciclo reinicia quando a prescrio que resulta da abordagem do representante comercial chega farmcia, que remunerada pelo fornecimento dos dados de cada prescrio mdica que disponibiliza.

Tem-se aqui uma volumosa atividade de tratamento de dados pessoais, no apenas do ponto de vista global, mas considerando-se cada mdico monitorado.

Dado pessoal toda informao relativa a uma pessoa natural identificada ou identificvel (art. 5, I da LGPD). Uma informao que, “prima facie,” no se qualificaria como dado pessoal, a a s-lo quando associada a um elemento que possa identificar o seu titular. O medicamento prescrito numa receita mdica a a ser dado pessoal, com tratamento sujeito s normas da LGPD, a partir do momento em que tal informao coletada juntamente com o nome e o CRM do mdico prescritor do frmaco.

Portanto, as operaes de coleta, armazenamento, compartilhamento, classificao e criao de perfil do mdico constituem tratamentos de dados pessoais que, para serem lcitos, devem estar em conformidade com a LGPD.

Cada operao citada acima precisa estar fundada numa das hipteses em que a lei autoriza a realizao do tratamento de dados pessoais (base legal), ter uma finalidade legtima, especfica, informada ao titular (mdico). Os dados coletados devem ser adequados, necessrios e relevantes para a finalidade legtima informada, as operaes devem ser transparentes, no podem se destinar a fins discriminatrios dos seus titulares e esto sujeitas a prestao de contas.

Os mdicos, enquanto titulares de dados, devem ser previamente informados sobre os seus direitos, garantidos pela LGPD, e devem ter assegurado o livre o aos dados (art. 6, IV da LGPD). Devem tambm ser previamente informados sobre a forma como os seus dados so tratados e a durao do tratamento, assim como sobre a identidade do agente de tratamento responsvel, sobre o uso compartilhado dos seus dados, os destinatrios e a finalidade do compartilhamento e sobre as responsabilidades de cada agente de tratamento envolvido.

A LGPD assegura aos mdicos o direito de requerer, junto a farmcias, laboratrios farmacuticos ou s empresas intermedirias, declarao clara e completa que indique a origem dos seus dados pessoais, os critrios utilizados para o tratamento dos dados e a(s) finalidade(s).

Registra-se que vedado fazer um uso posterior dos dados pessoais para finalidade que no seja compatvel com a finalidade primria, que originou o primeiro o aos dados. Deste modo, uma vez que as informaes constantes da prescrio se destinam aquisio do medicamento pelo paciente junto a uma farmcia, o uso destes dados para os fins noticiados na reportagem no se afigura compatvel com o propsito original, reclamando, cada operao de tratamento de dados acima citada, a observncia de toda a cadeia de conformidade com a LGPD.

No que tange aos compartilhamentos, a farmcia deve ser capaz de informar a base legal que a autoriza a transmitir os dados pessoais da receita mdica para as empresas intermedirias, assim como o fim legtimo e especfico deste tratamento de dados, alm de cumprir os outros deveres que importam na licitude do tratamento dos dados. De seu lado, as empresas intermedirias devem ser capazes de demonstrar a base legal para o o a tais dados disponibilizados pelas farmcias, assim como o fim legtimo e especfico que o justifica e os demais requisitos de licitude. Por outro lado, devem tambm ser capazes de demonstrar os mesmos requisitos para a operao de transmisso destas informaes para as indstrias farmacuticas que, por seu turno, devem ser capazes de demonstrar que o seu o s informaes transmitidas pelas empresas intermedirias se funda numa base legal adequada, destina-se a fins legtimos e especficos, informados aos mdicos delas titulares, alm dos demais requisitos exigidos para que a operao de tratamento de dados seja lcita.

A atividade de tratamento de dados revelada se qualifica como de alto risco pelo elevado volume de dados pessoais e pelo nmero de titulares de dados envolvidos (tratamento em larga escala), realizao de monitoramento dos titulares de dados, tomada de decises automatizadas para criao de perfis profissionais dos mdicos. E o propsito ltimo da atividade seria influenciar o mdico na tomada de deciso acerca do frmaco a ser prescrito ao seu paciente.

Considerando a informao da reportagem, de que os mdicos so segmentados, dentre outros critrios, por especialidade e mdia de preo dos medicamentos que mais prescrevem, e que o representante comercial utiliza tais informaes na abordagem, conclui-se pela plausibilidade da existncia de um risco representado pela prescrio do medicamento ao paciente resultar no daquela que seria a melhor opo farmacolgica para o seu tratamento, consoante um livre entendimento do seu mdico, mas sim do convencimento do mdico por parte do laboratrio, cujo representante entendeu que seria maior a probabilidade de influenciar o mdico se apresentasse, como a melhor alternativa para determinado tratamento, um medicamento que se encontrasse na faixa de preo da mdia das suas prescries (definida no seu perfil), sem que o profissional, contudo, tivesse cincia da incluso e da determinabilidade deste critrio na definio do “melhor tratamento farmacolgico” para determinada patologia de um seu paciente.

Tal grau de influncia exemplificaria o que se pode considerar “limitao significativa do exerccio de direitos”, uma vez que, criado o perfil profissional do mdico, fica este sujeito a um grau tal de influncia e manipulao, que pode anular ou comprometer a sua autonomia na tomada de deciso sobre a prescrio farmacolgica aos seus pacientes. Esta circunstncia participa da caracterizao das infraes LGPD de natureza grave. Outras circunstncias que participam desta qualificao gravosa da infrao so, por exemplo, a pretenso do infrator de auferir vantagem econmica, a inexistncia de base legal a sustentar o tratamento dos dados, a realizao do tratamento de dados com efeitos discriminatrios ilcitos ou abusivos.

Dentre os direitos e liberdades tutelados pelo direito proteo de dados encontra-se justamente o direito ao livre convencimento, a liberdade e a autonomia para a tomada de decises. A boa f como um dos princpios de base do regime jurdico do direito proteo de dados impe a transparncia e o dever de informao como meios de equilibrar a relao entre agente de tratamento e titular dos dados. Influenciar uma pessoa para a tomada de decises de modo furtivo (a partir de dados pessoais seus j analisados e perfilados sem o seu conhecimento), mas acreditando ela que o faz com liberdade de informao e livre formao da sua convico, contraria frontalmente a base do Direito e, na relao entre o agente de tratamento de dados e o titular destes dados, representa deslealdade e quebra da confiana depositada no agente pela lei que autorizou o tratamento dos dados.

Evidencia-se assim a posio-chave que o princpio da transparncia (art. 6, VI da LGPD) assume no regime jurdico da proteo de dados, estando estritamente vinculado aos princpios da boa f e da “ability” (art. 6, caput e inciso X da LGPD), e devendo ser observado durante todo o ciclo de vida do tratamento dos dados. Ele impe que o titular dos dados tenha cincia de que suas informaes esto sendo coletadas, utilizadas, compartilhadas e/ou sujeitas a qualquer outra operao de tratamento, bem como da medida deste tratamento e no seja surpreendido negativamente “a posteriori”. ele que viabiliza para o titular dos dados o exerccio do seu direito fundamental autodeterminao informacional, implcito na Constituio Federal de 1988, como j declarou ou Supremo Tribunal Federal, proporcionando ao titular dos dados o controle sobre o uso das suas informaes, bem como a responsabilizao dos agentes de tratamento em caso de abuso ou uso ilcito dos seus dados.
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